26 nov. 2006

Os gémeos Duarte


"Se hà alguma coisa que torna suportaveis os atrasos nos aeroportos, sao as pessoas, essa curiosa raça espontânea irmanada pela ira e pela ausência de defesa que, passadas as primeiras horas perdidas, se distende, murmurando que para tudo hà remédios menos para a morte e entrando nas confidências.

Num destes jà rotineiros atrasos no aeroporto de Madrid, vencida a vontade de armar um escândalo inutil, decidi dormir sobre um dos duros assentos desenhados por criminosos da modernidade. Mal tinha fechado os olhos quando uma cotovelada nada discreta mos fez abrir de novo. _ Vai uma golada? _ disse o homem. Era mais ou menos da minha idade e oferecia-me um cantil forrado de cabedal castanho.

Aceitei. Hà muito que nao sentia o sabor da aguardente de cana, esse alcool proletario que nao tem o aroma do bagaço nem o fervor da cachaça, mas que sempre me soube a gloria nos dias chuvosos de Montevideu.

Devolvi-lhe a garrafa e depois apertamos as maos.

_ Duarte _ disse ele, e respondi-lhe com o meu apelido.
Era uruguaio, voava primeiro para Frankfurt e de là para Moscovo, onde pensava adquirir utensilios circenses.

_ Os russos tinham bons circos mas desmontaram-nos, privatizaram-nos e foram-se. Até a escola de circo foi fechada. Que os pariu!_ queixou-se Duarte.

O que sei de circos é muito pouco e suponho que ele notou a minha contrariedade, porque me mostrou uma fotografia em que se viam dois trapezistas exactamente iguais.

_ Somos os gémeos Duarte. Hà-de ter ouvido falar de nos. Viajavamos por toda a América com o Circo Las Aguilas Humanas. Somos nos, os gémeos Duarte.

Enfiamos outra golada. De que é que se fala com um trapezista?

_ Puxe pela memoria. Os gémeos Duarte. Estivemos varias vezes no seu pais, quando a estrela do circo era o fabulosissimo Cappi.

Chegou-me entao à memoria um sabor a pombinhas, a serradura, e as recordaçoes de uma infância jà bastante longinqua com ferros e rede de arame, dentro da qual um motociclista desafiava a gravidade numa interminavel e veloz viagem circular.

_ O motociclista?
_ Esta a ver como se lembra de nos?
Sim. De que é que se fala com um trapezista? Perguntei-lhe pelo outro da fotografia.

_ Sabe-se là. Pode estar morto. E pode ser que nao. Um dia, em 74, estavamos a actuar em Colonia do Sacramento quando as tropas invadiram o circo. Levaram-nos a todos, os palhaços, o homem de borracha, o domador de tigres, o magico, os musicos. Toda a gente para o quartel para prestar declaraçoes, e, à medida que o faziamos, iam-nos soltando, até que um tropa disse que o meu irmao Telmo nao era uruguaio nem trapezista, mas sim argentino e guerrilheiro.

Defendemo-nos como pudemos, mostramos certidoes de nascimento, recortes de jornais internacionais, pedimo-lhes que olhassem para nos, éramos iguais, mas eles insistiram e levaram-no para o outro lado do Rio de La Plata. Nunca mais soube dele.

A cana é amarga, como a historia que gota a gota vai caindo num mar que nos querem apresentar em calmaria.

Depois da prisao do irmao, Duarte nao abandonou o circo. Continuou pendurado nos trapézios, imaginando que as maos firmes que o recebiam depois do triplo salto mortal eram as do seu duplo.Assim, a vida continuou no ar e tambem na terra, porque se casou e_ gloriosas sejam as leis da genética _ a mulher teve um par de gémeos assombrosamente iguais.

_ Este chama-se Telmo, como o meu irmao, e este outro é Rolo, como eu. Os gémeos Duarte _ disse com orgulho me exibia um programa de circo que os mostrava vestidos com malhas coloridas e saudando o pùblico com as maos cheias de pez.

Por fim uma voz chamou-nos para o embarque, e deixei Duarte na sala do aeroporto. Desejei-lhe sorte, que encontrasse os seus trapézios em Moscovo, que nunca lhe falhassem os amuletos protectores e que saudasse da minha parte os Gémeos Duarte, cavaleiros do ar livre e inocente dos circos".

Luis Sepulveda, in As rosas de Atacama, Ediçoes ASA.

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