18 avr. 2007

Feitos do Império (ultra-liberal) no Alentejo

Além da Crónica, hoje desafio-vos a ver a rubrica da RTP 50 Anos - 50 Notícias.
Em particular no próximo sábado, 14 de Abril, referente ao "Acontecimento do Ano" de 1994.
Alguém (altamente colocado) vai ficar com as orelhas a arder.
Adivinhem quem...
E agora, LÁ VAI CRÓNICA... em texto directo, anexo e em www.radiopax.com

Ilha das Flores

O título desta crónica parece sugerir o mar de brumas do fantástico arquipélago dos Açores. Mas esta Ilha das Flores fica bem no coração da planície alentejana, a meia-dúzia de quilómetros de Beja, a caminho do futuro aeroporto onde os alemães construíram a base aérea, nos já longínquos anos 60. Nos últimos anos a Ilha das Flores tem sido habitada por muitos estrangeiros, não por alemães, mas sobretudo por moldavos e também alguns romenos e ucranianos. E o nome não bate certo com a coisa: em vez de um jardim, foi montada o estaleiro ou “plataforma logística” duma empresa que leva “a marca Alentejo” (para usar expressões em voga) a tudo o que é feira ou exposição, do Minho ao Algarve ou mesmo em Espanha.

A ideia era genial. Como se sabe, neste país em crise permanente, alguns sectores andam sempre de vento em popa: além da banca – um caso à parte – às tascas e às funerárias juntaram-se, nos últimos anos, as feiras e exposições. Parece mistério como há tanta coisa para expor, quando todos os dias fecham empresas… Mas, desde os tempos áureos do comércio das Índias, ninguém nos bate na arte das mil maneiras de embrulhar o mesmo produto. Nem que seja à custa de mão-de-obra estrangeira. Afinal, depois de tanto emigrarmos, lá aprendemos as vantagens da imigração que só alguns energúmenos fingem ignorar, em forma de cartaz, no Marquês de Pombal.

Além de estaleiro, a Ilha das Flores transformou-se em camarata para dezenas de trabalhadores. Tal como na tropa, onde os soldados são acordados a qualquer hora para partirem para uma operação ou em combate, este brigada da Moldávia está sempre “pronta a atacar”, seja uma feira em Bragança ou Mirandela, uma exposição em Viana do Castelo, Aveiro, Felgueiras ou Gondomar. E daí para baixo: Viseu, Guarda, Coimbra, Leiria, Lisboa, Setúbal, Alentejo ou Algarve. Não é raro acabar a montagem de uma exposição ás 3 da madrugada em Sintra e, de imediato, uma carrinha cheia de trabalhadores arrancar para Ourique ou Portimão, com heróis sem sono a conduzir horas seguidas. Milagre mesmo é não haver mais acidentes e vidas ceifadas no asfalto.

E assim, neste jardim onde só crescem flores do mato, se construiu uma empresa de sucesso. Além das encomendas sempre a crescer, há outros segredos: 35 euros por 10 horas de trabalho diárias (3,50 euros à hora, não actualizados desde 2001) que podem ser sempre acrescentadas e para as quais não contam os tempos de viagem – uma espécie de bónus que os trabalhadores são obrigados a oferecer ao patrão. Mas este, preocupado com o ambiente familiar, dá-lhes anualmente dois meses de férias no país de origem, normalmente na época baixa de feiras, com uma particularidade: estes dois meses não são pagos, bem como os respectivos subsídios de férias e Natal.

Pode perguntar-se: como é possível alguém aguentar e calar, durante tantos anos? A verdade é que, no mundo-cão em que vivem milhares de imigrantes em Portugal, esta Ilha das Flores oferecia uma relativa “flexisegurança”: durante dez meses trabalham “a matar”, podendo receber cerca de 1000 euros mensais, consoante o número de horas; gozam dois meses de férias não pagas e têm trabalho garantido no regresso. Com uma cláusula adicional: “se não aceitas, a porta da rua é já ali e há mais umas dezenas à espera”. Além disso, a maioria (mas não todos) tem contrato, faz alguns descontos para a segurança social e tem os vistos de trabalho em dia.

O sistema funcionou na perfeição enquanto o horizonte dos trabalhadores se limitava a acumular o máximo de dinheiro, na ilusão dum regresso rápido. Mas chegaram as mulheres e os filhos, muitos deixaram a camarata da ilha das Flores e vieram morar para a cidade; assumiram compromissos, como pagar a renda no princípio do mês. Passaram a exigir o pagamento do salário a tempo e horas e não com dez ou quinze dias de atraso. Então a “empresa de sucesso” perde as estribeiras e ameaça com despedimentos. Por azar, foi apanhada com vários trabalhadores ilegais que viviam sob chantagem permanente, sendo obrigada a dar-lhes os documentos necessários à obtenção dos vistos. Um deles acaba de sair de um mês em coma no Hospital de Beja e nem segurança social tinha…

Os mitos de sucesso, como os impérios, também se abatem. Entretanto, tudo isto se passa com a conivência dos governos, como o actual – a propósito, o que é feito da nova lei de imigração, prometida há quase um ano? Ou estão à espera que Portugal acabe por se transformar numa imensa Ilha das Flores, em nome da Flexisegurança?

Alberto Matos – Crónica semanal na Rádio Pax – 10/04/2007


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