Não são horas para o comum dos mortais estar acordado, sobretudo na véspera dum dia de trabalho. Mas, uma vez por outra, todos assistimos a uma daquelas sessões de anúncios e vendas em directo pela TV. O processo está de tal modo profissionalizado que há canais nas redes de cabo dedicados exclusivamente a este tipo de vendas agressivas. Claro que só assiste quem quer. Mas a coisa foi muito bem estudada e funciona. Como não podia deixar de ser, tudo começou na América: a quase totalidade desta programação global é dominada por agências publicitárias made in USA.
Há pouco mais de um ano, um familiar meu encomendou uma daquelas máquinas de ginástica que fazem maravilhas ao corpo. E fê-lo sem qualquer preconceito, até porque experiências anteriores de televendas nunca tinham corrido mal. Desta vez, porém, o artigo não satisfez. Seguindo instruções muito claras do vendedor, procedeu à sua devolução no prazo de quinze dias, com a garantia de que o dinheiro seria integralmente devolvido através de depósito na conta – bastava indicar o NIB…
Começou aí a odisseia que está longe de terminar. Para encomendar basta ligar o 700 200 404, a qualquer hora do dia ou da noite. Em poucos dias o produto chega a casa, com a opção de compra a pronto ou a prestações – sabendo o que sei hoje, recomendo as prestações, ao menos só se perde a primeira… A empresa em causa dá pelo nome de GigaShopping.tv. Como o dinheiro nunca mais era devolvido, o meu familiar começou a telefonar para o número de apoio ao cliente: 219 856 119, mas este estava sempre interrompido, ou ninguém atendia, ou ia parar ao fax…
Ao fim de meses de desespero, recorreu ao serviço de apoio ao consumidor da Câmara Municipal de Beja que – disso sou testemunha – tem ajudado a resolver inúmeras reclamações. A técnica fez todas as tentativas de contacto para a morada, telefone e fax indicados na publicidade da empresa, sem obter qualquer resposta. Comentei com os meus botões: “é preciso cuidado com estes gajos…”.
Diz-se que à primeira qualquer cai, à segunda cai quem quer… O caricato é que uma noite acordei estremunhado, ao som da televisão que me tinha esquecido de desligar. Antes de ter tempo de deitar a mão ao comando, dei com os olhos numa vistosa tenda azul que, a princípio me parecia de campismo; mas não, era um secador de roupa, de nome “AIR-O-DRY”, à americana! Além de secar a roupa, as camisas ficavam enfunadas e nem precisavam de ser passadas a ferro. Uma autêntica dádiva dos céus! Com a lucidez própria das quatro da madrugada, telefonei para o 700 200 404 e confirmei a encomenda – a pronto, já que a tenda milagreira custava pouco mais de 100 €!
A única coisa que consigo alegar em defesa da minha sanidade mental, além da hora tardia, é que desconhecia o telefone e o nome da firma – a mesmíssima GigaShopping – que se tinha esquecido de devolver o dinheiro ao meu familiar. E fi-lo, claro, com a autoconfiança de “quem já tem muitos anos disto – a mim não me enganam eles…”. Que ideia! A dita tenda era minúscula e o ar quente, soprado por uma espécie de mini secador, escapava-se pelas fendas… E lá devolvi o artigo.
Desconfiado, confirmei que se tratava da mesma empresa. Assim, em vez de fazer a devolução pelo correio, resolvi ir pessoalmente a uma loja da GigaShopping, por sinal de muito bom aspecto, na Rua Ilha dos Amores, junto à esquadra da PSP no parque das Nações, em Lisboa. Fui atendido com a maior simpatia, mas ali não se aceitavam devoluções, só no serviço de apoio ao cliente, em Lousa. Decidido a provar até à última gota deste cálice, segui pela A8 para Lousa e fui até ao Carrascal. Não vendo nenhuma identificação da GigaShopping, resolvi perguntar num stand de automóveis usados. Com um sorriso, responderam-me: “É ali por trás”.
E era: escondido numa escarpa da encosta, um barracão imundo, cheio de artigos presumivelmente devolvidos – o dinheiro é que não! Além do ladrar dum cão e dum segurança avantajado, nada se ouvia. Perguntei pelo “serviço de apoio a clientes” e lá veio uma funcionária que, depois de alguma surpresa – “como é que o senhor aqui chegou?” – aceitou a tenda e me passou a guia de devolução, atestando: “produto completo e em perfeitas condições”. Confrontada com o caso do meu familiar, a diligente funcionária afirmou desconhecer as causas mas prometeu que o caso iria ser resolvido, tal como o meu. Incrédulo, pedi a morada da sede da empresa, para falar com alguém responsável. Confesso que a resposta já nem me surpreendeu: “isso é que eu não lhe posso dizer…”! Insisti: “então trata-se duma empresa clandestina?”. “Isso não lhe posso dizer…”
Passados quatro meses, tudo continua na mesma, excepto a senhora que me atendeu e que terá sido despedida – talvez por ter “falado demais” ou me ter dado o telefone directo do serviço de apoio a clientes. Afinal, quem não respeita o consumidor, porque haveria de respeitar os seus trabalhadores? Há negócios perfeitos: perdido na economia global, um barracão escuro cheio de artigos devolvidos e milhares de clientes que vão perdendo a paciência, mas também a esperança de ser indemnizados. Entretanto, todas as madrugadas, eles passeiam-se impunemente nas televisões: 700 200 404.
Citando um anúncio em voga, eu diria que é um negócio quase perfeito: aqui deixo o aviso a outros incautos; e, pela minha parte, não descansarei enquanto não for desmascarada esta Gigafraude.
Alberto Matos – Crónica semanal na Rádio Pax – 12/06/2007
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